IDE E PREGAI SOBRE EXU . - TVR USM

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IDE E PREGAI SOBRE EXU .

De todas as divindades afro cultuadas no Brasil, Exu é a mais injustiçada pela cristianização/demonização

A energia dos Orixás não pode ser acorrentada por binarismos eclesiais. Ao contrário, deve irradiar por meio de nós e de nossos atos atingindo àqueles que se abrem para o amor, seja qual for a fé.
O racismo religioso constitui, ainda hoje, o principal obstáculo para uma popularização positiva das religiões de matriz africana no Brasil. A positivação está na desmitificação do sagrado afro-brasileiro, sobretudo de seus santos e encantados como é Exu.
O cristianismo que conhecemos deve muito às cruzadas, aos apóstolos, missionários e evangelistas. Ou seja, não fosse essa vastidão de “soldados de Cristo” trabalhando ao longo da história, a fim de levar o evangelho a mim e a você, evidentemente o cristianismo não teria o poder que tem.
Sem abrir mão de todos esses soldados, os cristãos entenderam que precisavam dar um “up” para atingir sua missão. Se por um lado eles souberam usar muito bem seus dogmas, por outro, souberam usar melhor ainda o marketing, fixando, em cada alma, uma moral judaico-cristã.
No caso do Brasil, a Igreja Adventista do Sétimo Dia foi a pioneira no rádioevangelismo e também no televangelismo.
O primeiro programa de rádio brasileiro de cunho religioso foi o A Voz da Profecia, que foi ao ar pela primeira vez em 23 de setembro de 1943, ocasião em que 17 emissoras de rádio do país se uniram à Igreja Adventista do Sétimo Dia na emissão histórica, sob o comando do pastor Roberto Rabello.
Com a finalidade de ensinar sobre a bíblia, surgia, em 1962, o primeiro produto evangélico da televisão brasileira: Programa Fé para Hoje. Asdramatizações do programa (tipo o Linha Direta, lembra?), eram simulações que apresentavam uma interpretação do evangelho de Cristo. O Fé para Hoje foi exibido inicialmente aos domingos, na TV tupi — a primeira emissora de televisão da América do Sul.
Porém, não há como falar em rádioevangelismo sem falar do missionário David Miranda, fundador da igreja Igreja Pentecostal Deus é Amor. Não é possível calcular quantas almas sua voz trêmula e arrebatadora atingiu ecoando em mega hertz. Ao mesmo passo em que também não podemos falar em televangelismo sem nos remetermos ao conglomerado da fé estabelecido por Edir Macedo com sua tão preciosa “expulsão de demônios”, o ponto alto de uma infinidade de cultos da Igreja Universal do Reino de Deus.
Assim, fixando sua moral em nossas mentes, o cristianismo nos fecundou a todos com o binarismo limitado do bem e do mal. Tornamo-nos escravizados pela lógica de pensar a existência e a vida com uma mentalidade bipolar, tão desavisada da diversividade real das culturas, que acaba por entrar em colapso ao mais sensível contato com a desconhecida multiplicidade do outro.
Esse conflito existencial binário de que falo não é de privilégio e sim muito popular, talvez tão popular quanto os curandeiros, as rezadeiras, benzedeiras, os chás, as raízes de fazer curar e toda sorte de magias, feitiços e encantos típicos de nossa brasilidade afro-indígena.
Afinal, quem de nós nunca se viu em conflitos pessoais entre a cruz e a encruzilhada?

A demonização de Exu

De todas as divindades afro cultuadas no Brasil, sem dúvida, a mais injustiçada pela cristianização/demonização é o orixá Exu. A diabólica atitude de muitos padres e pastores ao longo da história acabou por perverter as funções primordiais desse orixá. Nas palavras do professor Reginaldo Prandi, Exu é responsável por dar dinâmica à ordem do universo e realizar a comunicação entre os homens e os Deuses:
Exu propicia essa comunicação, traz suas mensagens, é o mensageiro. É fundamental para a sobrevivência dos mortais receber as determinações e os conselhos que os orixás enviam do Aiê. Exu é o portador das orientações e ordens, é o porta-voz dos deuses e entre os deuses (Prandi, R. 2001).
Tão absurdo quanto afirmar que Jesus Cristo, por ter caminhado sobre as águas, equivale a Poseidon, é sincretizar Exu com o Diabo. São vivências, culturas e epistemologias drasticamente diferentes para um e para outro.
Ensina o professor e Babalorixá Adesiná Síkírù Sàlám ou simplismente Baba King que:
Exu é o orixá da comunicação, é o orixá da organização, Exu é o orixá da ordem, da disciplina. É tudo aquilo que o homem não tem suficiente na sua vida. Exu atua pra dar ao homem a força necessária para que ele supere a si mesmo (…) Comparar Exu ao Diabo é uma ignorância sem tamanho. (Babá King, 2014)
Muitas vezes, até mesmo em lojas de artigos religiosos, Exu é representado por estatuetas demonizadas, cheio de chifres, rabo e garras…
Todos os orixás possuem também a função de guardião de seus filhos. São eles a expressão da grandeza do Deus maior, Olorum, materializada nos elementos da natureza, que com cada um em suas peculiaridades servem como elo de toda a criação.
No candomblé, a cada ser humano é designado um Orixá/guardião específico, segundo sua ancestralidade, ou seja, conforme a raiz de origem e afinidade de sua família africana. A forma mais íntima pela qual se conhece o guardião é ainiciação. Nesse processo, Exu transmite ao individuo por meio do jogo de búzios a mensagem de seu orixá, que decidirá o dia e hora de sua feitura no santo.
Um ponto para reflexão é: se existe de fato um ser supremo, que criou todas as coisas, inclusive outros seres designados para suas guarda e proteção, por que razão ele não te permitiria conhecê-los? Se relacionar com eles?
Nossa sociedade racista demonizando a religiosidade afro apagou de nós, negros, a cultura e a origem. Aprendemos que preto não tem magia nem encanto, e sim macumba.
Desde o primeiro contato violento entre as culturas européia e africana no Brasil colonial ouve a tentativa de subalternizar a identidade africana. Afinal, para dominar é preciso diferenciar. Apontamentos importantes sobre a demonização do sagrado africano estão no livro O diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonia.
Felizmente, já é possível encontrar algumas representações minimamente condizentes com a verdadeira expressão de Exu. Dois documentários são fundamentais para se começar a entender o que é Exu, o primeiro deles é o necessário Dança das Cabaças — Exu no Brasil, em seguida o belo A Boca do Mundo — Exu no Candomblé, ambos disponíveis no YouTube.

No longa metragem Cafundó (2005) é contada a história do médium e ex-escravizado João de Camargo, interpretada por Lázaro Ramos. A personagem de Lázaro tem dois encontros marcantes com um Exu (Flavio Bauraqui), mais próximo do arquétipo que se apresenta na Umbanda.
                        Representação de Exu- Filme “Cafundó” (2005)
Já no filme Besouro, Exu é representado muito mais próximo da manifestação presente no candomblé. O protagonista da trama, interpretado pelo ator Aílton Carmo, é ensinado por Exu (Sérgio Laurentino) a abandonar a vaidade e o orgulho para reverenciar o sagrado.
         Representação de Exu, ator Sérgio Laurentino — Filme Besouro 2009.

Como vencer um tabu

O desafio então é superar os dogmas, mitos e tabus sobre a religiosidade afro. Não exatamente como fazem outras religiões, em que os fiéis possuem um dever casto de evangelizar a toda criatura, mas sim por meio da educação.
Não digo somente da educação formal praticada nas escolas com todas as fragilidades possíveis. Digo que nosso comportamento, enquanto adeptos de religiões de matriz africana, seja também o de um educador. Se é verdade que o Brasil é o maior país negro fora do continente africano, estranhamente também é verdade que somos muito ignorantes a respeito da história da África.
É fundamental educar em sentido amplo, com nossos atos, modos e corpos. Apresentemos a quem queira saber e complexidade e magnitude que é Exu e todas as divindades do panteão africano, sem amarras, medos ou mordaças.
Contudo, é preciso fazer uma distinção aqui: de um lado estão os ignorantes e do outro estão os dominantes. Há aqueles que desconhecem o real significado e importância de Exu, a esses a possibilidade de sair do poço de desconhecimento deve ser oferecida. Mas há também aqueles que são criminosos, que veem na demonização do outro o pote de ouro por de trás do arco-íris.
Que tenhamos liberdade para falar de nossa afro-espiritualidadpara as nossas crianças e os nossos amigos. Que ninguém nunca mais nos atire pedras por estarmos de branco! Que jamais toque em nossos terreiros quem não tem nossa permissão!
FONTE: TVR USM

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