O LEGADO DAS DIÁSPORAS .
A culinária do orisa é um tema muito bem abordado no Brasil, antropólogos sacerdotes e sacerdotisas, bem como sacerdotes - izas acadêmicos a anos tem dedicado a esse tema com afinco. Ou seja, os formatos que a cozinha africana tem sido elaborada no Brasil é assunto de teses e dissertações e de um vasto material que elogia a riqueza da culinária de origem africana.
Quando a gente fala de Tradição Iorubá é importante termos ciência de que se trata de algo que vigorou em nosso imaginário. O que existe de fato é as tradições do povo de Oyo, as tradições do povo de Ifé, as tradições do povo de Ketu, de Abeokuta etc. É importante salientar aqui que essas tradições jamais tiveram consenso sobre o uso dos costumes e de ritos embora em algum momento elas se encontraram. Nem mesmo quando o Império de Oyo estava no seu auge, até porque o conceito de império reúne uma diversidade de reinos que o compõe, não havia consenso entre elas. Há rixas, mágoas históricas enraizadas no âmago desse povo que inclusive os diferencia como povo. Esse talvez tenha sido o maior dilema de etnias africana, ter se tornado uma quando eram várias.
A cozinha é parte integral da rotina do culto dos orisas, até porque as divindades comem o que a gente come, e comem as iguarias que comiam quando das suas andanças na Terra. No Brasil essa culinária foi implantada a partir da diferença. O próprio Candomblé como recinto da morada dos orisas é pensado como esse lugar de diferença ou melhor de diferenças. Isso é mais do que cultura brasileira, trata - se do ethos de um povo - sua comida, seu vestuário, seus ritos, seus códigos etc. Ha um processo civilizatório no Brasil que não se pode negar - tratar os sacerdotes de cultos africanos no Brasil com desdém ou desprezo é no mínimo desrespeitoso, assim como os sacerdotes de Cuba, Trindad y Tobago etc. O Brasil não precisa pedir benção para nenhuma territorialidade africana de tradição de orisa ou vodun, porque o ethos civilizatório africano seja ele iorubá, ewe, fon etc., está vivamente presente no Brasil e nas diasporas.
Quando falamos de diasporas não estamos falando de uma coisa inventada sem pé nem cabeça. Quando a gente fala de diáspora, estamos referindo a tudo que um povo trouxe do seu território de origem para um outro território. A diáspora não têm menos valor do que o território originário. A discussão sobre diáspora não trata-se de quantificar ou valorar processos, mas entender que 200 / 300 anos de diasporas é a consolidação do pressupostos civilizatório originário em outro local.
As fronteiras, mesmo quando ultrapassadas, não abole a etnicidade, vai nos dizer o antropólogo social norueguês Fredrik Barth. Ninguém deixa de ser africano porque foi morar nos Estados Unidos. Ainda que o indivíduo africano vincule através do casamento com uma moça americano, a etnicidade africana será passada para o filho. No Brasil nós descendentes de africanos vindo como escravos reclamamos a muito essa etnicidade, esse lugar de pertença, sobretudo nós que abrimos mão da religião que nos foi imposta e retornamos as tradições dos nossos antepassados. O que legítima o nosso ethos ou melhor a nossa etnicidade é o nosso sentimento / desejo de pertença e o nosso retorno, bem como as vivências que se consolidam em nossos corpos como legado civilizatório. É um processo que se configura nostálgico, porque a ancestralidade originária mora dentro, ela externaliza pra fora e aquilo que é próprio da Tradição nos soa mais familiar do que estranho. São os corpos tal como pergaminhos que torna legítimo essa herança.
São tempos perniciosos estes que vivemos, re-invidicar esse lugar quando muitos se distanciaram é de fundamental importância. Os desafios de outrora está em posicionar as peças do xadrez no lugar delas. Refundar o que já está fundado. Tenho insistido em falar de uma primavera negra do mundo e isso também consiste que o povo negro se posicione e retorne as tradições dos seus antepassados. Neste sentido, contribuíramos com um devir negro do mundo como anunciou o filósofo camaronês Achilles Mbembe.
A comida faz parte desse ethos, ela exprime a própria etnicidade enquanto lugar que contribui para definir nossa identidade no mundo. A cozinha é um lugar plural de identidades, o que um povo come fala de onde ele vem, onde ele está e para onde ele vai. A comida fala de nós, manifesta nossa maneiras de relacionar com a alimentação e com o sagrado. A comida também pronúncia nossos modos de existência que trazemos desde sempre.
A cultura que os nossos antepassados africanos trouxeram desde África propicia aquilo que Roger Bastide em “O Candomblé da Bahia” chamou de “uma África em miniatura”. Isso é importante para gente identificar esse ethos e entender um pouco melhor essa questão de etnicidade. O que quero dizer é que os nossos antepassados estavam o tempo todo preocupados e ocupados em ré-criar a África no Brasil. Digo a África, mas quero salientar a África do antigo Golfo do Guiné onde hoje é a atual Nigéria, Togo, Benin e Gana. Estou ocupado em identificar que essa África tradicional que eles buscaram ré-construir no Brasil, em Cuba, em Trindade y Tobago etc., é mais fidedigna do que está África atual, está África dos nossos anseios por retorno. A África da nossa memória, contos e causos do nossos antigos não é essa África atual. Então estamos buscando no lugar errado, devemos voltar ao Candomblé para re-encontrar com essa África dos nossos afetos e memória.
A África atual, essa presente no antigo Golfo da Guiné é a África do nossos diálogos plurais, dos laços estreitados, dos vínculos bem feito e da celebração coletiva. O Brasil pode ensinar muito a África dos orisas e dos voduns e a África dos orisas e dos voduns ainda podem oferecer muito ao Brasil e as diasporas em geral numa contribuição mútua, coletiva e conjunta.
Em nada as diasporas necessita da África dos Orisas e dos voduna, essa África necessita muito mais das diásporas inclusive para manterem sua sobrevivência tão dizimada por um apagamento das tradições locais em função de conversões díspares ao islamismo e cristianismo. O Brasil e tantas outras diasporas devem se dispor contribuir para que os cultos originários da antiga Costa africana possa sobreviver e manterem para posteridade.
Bàbá Adèlòná Sàngówàlé é sacerdote de Ifá e especialista em Estudos Africanos, é psicólogo e psicanalista com pesquisas em etno-psicanálise e psicologia das culturas. Escreve ensaios semanais, participa de redes de discussões diversas, assessora os movimentos negros e indígenas em geral nas temáticas da racialidade, da etnicidade e dos pressupostos tradicionais da cultura africana de Ifá e Orisa nas diásporas. Tem interesse nos temas que envolvem a racialidade, a etnicidade, as práticas e os saberes tradicionais e indígenas. É membro do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás - UFG.
FONTE : AUTOR DESCONHECIDO
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