OS DEUSES SE DISFARÇAM - EXU - TVR USM

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OS DEUSES SE DISFARÇAM - EXU

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Era meio-dia de uma segunda-feira de verão no Rio de Janeiro. O centro da cidade, além de lotado de transeuntes famintos na hora do almoço, estava quase que em brasa devido ao calor. E eu ali, no meu primeiro dia em um novo emprego, acompanhando a massa, me sentindo preocupado e no momento mais solitário da minha vida. Fora assaltado dois dias atrás, na porta do banco. Havia acabado de sacar todo o meu último seguro desemprego, depois de 3 meses sem nenhum serviço. Queria pagar minhas dívidas e fazer as compras do mês. Por sorte me sobraram alguns trocados para fazer milagres e ainda bancar minhas passagens de ônibus. Até tentei pedir algum dinheiro emprestado, mas os tantos amigos que eu tinha nas festas e nos bares me deram as costas. Eles também precisavam de dinheiro pra comprar suas alegrias. Sumiram todos.

- Ei, camarada! - Uma voz masculina interrompeu minha lamentação. Era um dos muitos mendigos que moravam por ali. Um senhor de certa idade, com o corpo sujo e as roupas surradas, maltratadas pela poeira levantada por carros e ônibus que não paravam de passar. Com medo, fingi que não era comigo. Afinal, se ele me roubasse, não teria nem como voltar pra casa.

- To falando contigo! - E se pôs na minha frente, escancarando a boca em um sorriso quase sem dentes.

- O que é?

- Eu to com fome. Tem uns trocados pra mim?

"Até parece", pensei. Não era segredo a alta circulação de crack entre os moradores de rua dali.

- Não tenho, não.- Falei inflexível.

- Olha, amigo, a padaria é bem aqui em frente. Pode comprar pra mim se achar que é mentira. - Sem paciência que sou, acabei tirando alguns centavos do bolso. Afinal, se ele estivesse mentindo, não era problema meu. Fiz a minha parte.

- Só isso? - O abusado riu de mim. Fiquei perplexo. Os ossos da clavícula já estavam bem aparentes e as veias muito saltadas. Como pode um homem passando fome e morando na rua achar tempo pra rir de quem estava tentando ajudá-lo? Só podia estar maluco. Acabei dando o restante do dinheiro, com exceção do da passagem. Depois eu dava um jeito.
- Nossa, meu irmão, tu tá mal mesmo, hein? - E com uma gargalhada me deu três tapinhas no ombro, virou as costas e se perdeu na multidão.

Certa vez me disseram que Exu gosta de nos testar. Me perguntei se esse era um desses momentos. Voltei para o trabalho, já que não almoçaria mais.

No fim do expediente, esperando a volta para casa, dois ônibus da mesma linha pararam ao mesmo tempo no ponto onde estava. Foi aquele desespero. Em meio ao empurra-empurra, um desses homens de preto engravatados topou comigo e nossas bolsas caíram no chão. Ele se desculpou com certa raiva, recolheu tudo rapidamente e saiu correndo, deixando uma espécie de carteira, algo como uma maleta bem pequena no chão. Quando olhei pra trás para tentar chamá-lo, ele já havia sumido. Não vi opção a não ser ir embora.

Assim que cheguei, fui à procura de informações sobre o homem misterioso e ao abrir a mala, para minha surpresa, o dinheiro que estava ali era suficiente para meus compromissos e necessidades. Mesmo me sentindo tentado, vasculhei todos os cantos da bolsa, e não encontrei nada. Nenhuma identificação, nenhum cartão de crédito, nada!

"Exu atira a pedra hoje para acertar o pássaro amanhã." Lembrei do andarilho. Eu que sempre fui dos "certinhos", metódicos e incorruptíveis, recebi um deboche que mais me pareceu uma pedrada, bem na cara da minha vaidade e do meu orgulho, enquanto na verdade, a pedra de Exu atingiu o pássaro, a injustiça que sofri, me dando a oportunidade de pôr comida em minha mesa.

Daquele dia em diante, nunca mais neguei dinheiro a nenhum morador de rua. 
Principalmente aos abusados, debochados e sem dentes. Que desde então, curiosamente, sempre me sorriem.


FONTE : Thais de Oyá
FOTO : Angelina Yamada

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