'SEMPRE SABEREI QUE MEUS FILHOS ESTÃO BEM E JUNTOS', DIZ MÃE DE IRMÃOS MORTOS NA LINHA AMARELA

Ana Paula Souza e Carlos Souza com itens que pertenciam aos seus filhos Juan e Guilherme Foto: Domingos Peixoto
Segurando firmemente o cordão de seu filho com uma medalha de São Jorge e anel de noivado, Ana Paula Souza enfileirava, com fala rápida, diversas histórias dele e do irmão. Ao seu lado, Carlos Souza fazia algumas ponderações e se dividia entre as memórias e o cuidado com a mulher e objetos deixados nos quartos. Nesta terça, na casa em Quintino, o casal ainda absorvia, três dias depois, o acidente que culminou na morte de seus dois filhos e outros três jovens , na Linha Amarela . Apaixonados pelo Vasco e pagode, e sempre rodeados de amigos, os irmãos Juan Carlos e Guilherme Moreira Souza tiveram suas vidas tragicamente interrompidas aos 24 e 20 anos, respectivamente. Amparados na espiritualidade — a família é umbandista — os pais rejeitam a busca por possíveis culpados e tentam compreender e aceitar os destinos traçados para os filhos. A princípio, combinaram que não dariam entrevistas, mas aceitaram conversar com o GLOBO com o propósito de resgatar lembranças positivas como forma de homenagem.
— Não queremos culpar ninguém. Muito menos o Alex (motorista). Ele morreu, não pode nem se defender. Todos eram muito amigos e entraram juntos no carro. No meu coração, sempre saberei que meus filhos estão bem e juntos. A última homenagem que posso fazer é mostrar as paixões deles — afirmou Ana Paula, com a voz embargada.
Em muitos momentos, os pais se referiam aos filhos no presente, sintomas de quem precisa lidar com uma perda abrupta. Ana Paula, que é dona de casa, chama os filhos de “meu Juan” e “meu Guilherme”.
— O meu Juan tinha que ser político, porque conhecia todo mundo. Já o meu Guilherme era mais reservado, caseiro, mas desde que entrou no Exército passou a sair mais e ficar mais desenvolto. Os dois brincavam muito conosco, me chamavam de “popozão” ou “minha rainha”. Já o Carlos era “feijão” ou “pai herói”.
Quando crianças, eles sonhavam em jogar futebol. Juan até treinou poucas vezes no Vasco, mas o que acabou lhes fisgando foi o desejo de seguir a carreira militar. Juan, de 24 anos, entrou para a Aeronáutica, mas há cerca de dois anos, após ser reprovado em provas internas, precisou deixar o posto e passou a trabalhar na loja infantil Toyboy, no Shopping Tijuca. Era muito festeiro, já foi promoter do clube Tradição e portelense fanático. Guilherme, de 20 anos, estava no Exército, em breve concluiria curso técnico de informática na Faetec e recentemente havia trocado anéis de noivado com a namorada Thamires Carneiro. Há dois anos se tornou ogã (título daqueles que recebem intuições espirituais e tocam atabaque nos rituais de religiões de matriz africana), seguindo os caminhos do pai. Guilherme era filho de Ogum (associado a São Jorde no catolicismo) e Oxum, e Juan de Xangô e Iemanjá.
Intuição antes das mortes

Ana Paula Souza, mãe dos irmãos: "Não queremos culpar ninguém" Foto: Domingos Peixoto
Ana Paula se diz sensitiva. Em outros momentos da vida, teve intuições momentos antes de mortes de pessoas próximas. Há 10 dias, ela explicou que sonhou com sua sogra — a falecida mãe Selma de Xangô — numa mensagem que interpretou como anúncio de morte de alguém da família. Ela compartilhou a preocupação com marido e filhos, e no início pensaram que poderia ter relação com seu pai, que está adoentado. Por isso, passou os dias seguintes com sensações ruins e desconcentrada. Em uma tarde, quase bateu de carro. No sábado passado, horas antes da tragédia, teve uma visão de um acidente automobilístico, com uma voz dizendo que seria com seus filhos. Mas achava que era efeito do choque com o quase acidente sofrido por ela. Ainda assim, ligou para Guilherme, quando ambos já estavam na festa à noite, pedindo para que ele não deixasse o irmão voltar para casa sozinho.
A mãe falou ao telefone com Guilherme assim que eles chegaram na festa, e depois ligou novamente às 6h, quando eles já estavam na Linha Amarela. Nesse momento, ficou preocupada, ao descobrir que eles não estavam num carro de aplicativo, mas de carona. Logo que desligou, disse ter começado a passar mal, se urinou e, desesperada, pediu para o marido para irem atrás dos filhos. Ela citou que domingo era dia de Nossa Senhora da Conceição (Oxum, a mãe de cabeça de Guilherme) e já estava se preparando para o pior.
— Eles viviam grudados. Na hora que saíram da festa, o Guilherme já havia pedido o uber com a namorada, mas ele não conseguiu convencer o Juan, então voltou junto no mesmo carro para não abandoná-lo — disse Ana Paula, que alternava momentos de compreensão com desolação e questionamentos. — Eram muito comportados, quando eu pedia, eles não saíam de casa, não sei por que não fiz isso dessa vez. Mas era para ser, acho que foi um resgate coletivo. Os destinos estão traçados, mas questiono a brutalidade com que aconteceu.
Grupo de pagode e amor pelo Vasco

Juan, de 24 anos, entrou para a Aeronáutica, mas saiu há dois anos e passou a trabalhar na loja infantil Toyboy, no Shopping Tijuca Foto: Domingos Peixoto
Os amigos que estavam na festa no Espaço Hall eram o grupo “Tropa da Sujeira”. São cerca de 20 jovens que se conheceram inicialmente na vila em que a família Souza vive em Quintino. Estavam sempre juntos em aniversários, carnaval e reveillon. No sábado, os motivos das comemorações eram a promoção de Thaissa Castro, a vitória do time de futebol de Ítalo Ribeiro ( namorados que também faleceram no acidente, além do motorista Alex), e a última folga de Juan antes do intenso período de fim de ano na loja. Todas as vítimas foram enterradas juntas, quase lado a lado, por coincidência, segundo os pais.
Nas festas e encontros, o grupo também se arriscava no samba e pagode. Apesar de não ser músico, Juan tinha diversos instrumentos como pandeiro, tantã, cavaquinho e tamborim. Quando se reuniam, conseguiam “tirar um som” e chegaram a batizar a “banda” de Inimigos do Ritmo. Durante o enterro, os amigos e familiares cantaram o pagode “Castelo de um quarto só”, de Renato da Rocinha, uma das preferidas dos irmãos, que sempre a cantavam no banho. Eles também eram fãs de Zeca Pagodinho, Arlinho Cruz e dos grupos Clareou e Vem pro Sereno.
Outra música que esteve no enterro foi o hino do Vasco. Os dois eram torcedores fanáticos, e haviam acabado de virar sócios, na semana passada, durante a campanha de adesão em massa promovida pelo clube. No quarto que dividiam, no segundo andar da casa, os pais guardaram as dezenas de camisas vascaínas, além de objetos importantes como o atabaque e guias de Guilherme, fotos, instrumentos e pipas. Apesar do quarto, gostavam de dormir na sala, mais perto dos pais.
— Eles até tentaram nos forçar a virar sócios também — disse Carlos Souza, que também é vascaíno e trabalha como gerente comercial numa loja de dedetização. — Alguns jogadores do Vasco estão nos mandando vídeos de apoio. Uma pessoa da diretoria me procurou de disse que o presidente, Alexandre Campello, ia nos ligar.
Em casa, todos eram muito unidos, e um dos principais passatempos de Carlos era assistir séries com os filhos. Fanático por Game of Thrones, Juan tatuou uma das personagens da história no braço. Guilherme gostava de jogos eletrônicos, e, após juntar dinheiro, há um mês comprou um computador especial. O dinheiro que sobrou ele deu para a mãe comprar presentes para ela. Nesta segunda, a fatura do cartão com a primeira das dez parcelas chegou à casa.
Lembranças e sinais

Guilherme estava no Exército e havia trocado anéis de noivado com a namorada Thamires Carneiro Foto: Domingos Peixoto
Além das fotos e objetos, os pais agora convivem com a presença do cachorro Reus — em homenagem ao jogador de futebol alemão —, que virou o xodó da família há três anos. Um cão sempre foi um sonho de Guilherme, mas ele só o ganhou após ter sofrido uma grave convulsão aos 17 anos, num momento relevante para a vida do jovem segundo os pais. Logo depois, ele virou Ogã e passou a ficar ainda mais próximo do irmão, quem o salvou durante o desmaio.
— O Juan que começou a gritar para nos avisar durante a noite. Desde então, o Guilherme demonstrou muita gratidão — afirmou Ana Paula. — Eles foram enterrados juntos, o Juan embaixo e o Guilherme em cima, como dormiam na beliche do quarto.
Os pais não conseguiram voltar à rotina, mas aos poucos dizem que vão entendendo sinais que a vida enviou. Eles lembram dos momentos em que os filhos, em tom de brincadeira, diziam que iriam embora antes deles. Por exemplo, nas últimas semanas, quando estavam concluindo a compra de uma nova casa para a família, em Piedade, que seria colocada no nome dos dois.
— Eles diziam que não precisavam da casa pois não morariam lá. E a gente mandava eles pararem de brincadeira. O Guilherme estava vivendo de forma intensa, saindo mais, indo a todos os jogos do Vasco, como nunca antes. E o Juan ficava falando que se morresse depois de uma festa, ao lado dos amigos, estaria feliz. A gente agora vai se tocando do que a vida tentou nos avisar — disse Carlos.
Juan sonhava em voltar para a Aeronáutica, e concluir o curso de Educação Física, que precisou trancar por dificuldade financeira. Mas estava indo bem como vendedor na loja e amava crianças, explicou Ana Paula. Há dois meses, ele comprou um presente de natal para seu afilhado, filho de uma prima. A mãe disse que não pode fazer distinção entre o amor que tem pelos dois, mas destacava a conectividade que tinha com Guilherme, que, aos oito meses teve toxoplasmose, e por isso desenvolveu diversos problemas de saúde.
— Ele sofreu muito ao longo da vida, mas nunca reclamava. Era uma pessoa muito iluminada — disse Ana Paula, que não soltava o cordão de São Jorge (santo associado a Ogum no catolicismo), que Guilherme nunca tirava. — Eu peguei o cordão e o anel de noivado para lavar. A Thamires até pediu para eu colocar o anel no dedo dele, no enterro, mas não achei justo. Ela tem uma vida inteira pela frente. O cordão eu ia devolver para a tia que deu de presente para ele, mas ela me disse para eu guardar, porque agora será nosso elo.
FONTE : extra.globo
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