PADRE GEGÊ FAZ UMA REFLEXÃO SOBRE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA DA CANTORA LUDMILLA. - TVR USM

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PADRE GEGÊ FAZ UMA REFLEXÃO SOBRE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA DA CANTORA LUDMILLA.


Jesus, Tranca-Rua e Ludmila: e se escrevessem "Só Tranca-Rua expulsa o Jesus das pessoas"?


Por: Padre Gegê* 


No Festival Coachela - nos Estados Unidos - a célebre cantora Ludmila exibe um clipe sobre favelas durante o qual apresenta a frase: "Só Jesus expulsa o Tranca Rua das pessoas". 


A cantora rebate as críticas alegando que a frase foi tirada de contexto. O Babalawô Ivani dos Santos, entre outros e outras, interpreta como Intolerância Religiosa; e eu também! "Narciso acha feio o que não espelho". 


"Expulsar" é marca registrada do cristianismo colonialista que veio para "roubar, matar e destruir". 


Ao contrário,  as culturas e espiritualidades pretas são culturas e espiritualidades da Inclusão. 


Nas sabenças pretas, "a união faz a força". Em "A ciência encantada das macumbas",  lembram Luis Simas e Rufino que "Exu é boca que tudo come e corpo que tudo dá".


É preciso urgentemente descolonizar o "exorcismo" cristão! 


Em "Descolonizando afetos", escreve a psicóloga, escritora e ativista indígena Guarani, Geni Núnez: "Até hoje, quem persegue, destrói e queima casas de reza indígenas e terreiros de matriz afro é munido dessa ideologia da monocultura da fé, que não admite a concomitância, que não consegue conviver com a diversidade". 


Ponto de umbanda: "ô luar, ô luar, ô luar, mas Ele é o dono da Rua. Quem cometeu as suas faltas, peça perdão a Tranca Rua"!


É impossível ao cristianismo colonial de brancura escravista conjugar o verbo coexistir!


Desde criança ouço da boca de minha mãe, Marietta, a seguinte frase: "Pimenta nos olhos dos outros é refresco". 


No contexto   de intolerância religiosa no Brasil em que a "pimenta" historicamente  é lançada nos olhos das religiões de matriz africana é muitíssimo cômodo e fácil para um cristão ou cristã, seja lá de que seguimento religioso for (católico ou evangélico) falar ou escrever "Só Jesus  expulsa o Tranca Rua das pessoas" e achar tudo belo, bom e natural ("artístico"?). 


Tudo é muito "natural" quando  o ataque ou a ofensa não é dirigida ao meu campo religioso, às minhas práticas de fé ou às divindades de meu sistema de crença.


É necessário pensar que a polêmica em torno da frase exposta no telão no show de Ludmila não  é  um caso isolado. 


Nesse sentido, o debate vai muitíssimo além do exposto pela potente cantora. Não tira a responsabilidade de Ludmila, mas exige a discussão acerca do cristianismo colonialista que historicamente se colocou no Brasil e no mundo como a única verdade sobre Deus ou, no mínimo, a mais perfeita e acabada narrativa religiosa. 


Então, no cenário de pluralidade, diálogo, respeito e tolerância religiosa, o cristianismo (de direita ou esquerda, católico ou evangélico) traz em seu bojo questões seríssimas que colocam em xeque o ser mesmo do cristianismo como caminho religioso capaz de  promover o diálogo, a  igualdade e da paz.

 

Exponho aqui algumas questões que nós, cristãos e cristãs, não podemos desconsiderar:


A crença no Deus único e verdeiro , historicamente nos fez olhar para os outros caminhos religiosos como falsos ou imperfeitos, quando não demoníacos. É ou não é verdade? Ora, se afirmamos um só Deus verdadeiro (o nosso), como fica nosso olhar para com os outros caminhos?


O olhar de superioridade religiosa está na base de qualquer "Só Jesus". O que está escondido atrás da frase, por exemplo , como: "Só Jesus na causa". Por que "só Jesus"? Não há outros e outras?


No plano bíblico,como  é difícil estar com outras experiências religiosas em pé de igualdade quando leio "Ide pelo mundo pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crê será salvo e quem não crê será condenado ao fogo do inferno, onde haverá choro e ranger de dentes". 


Essa passam bíblica, lida acriticamente, não traz consigo uma sentença violenta imposta aos que não abraçarem a nossa fé? 


Como um cristão ou cristã com essa frase na cabeça e no coração vai olhar e se posicionar no cenário de pluralismo religioso?

 

Uma outra questão digna de ser considerada é a prática de expulsar demônios, extraída da prática de Jesus, como nos mostram os Evangelhos. 


O "direito" de demonizar (os "outros") não conferiu ao cristianismo na história o direito de "matar, roubar e destruir" os povos originários , africanos e diaspóricos?


O imperativo cristão de salvação universal (levar a salvação a todos os povos) não se transformou, em grande medida na história, projeto de dominação dos povos?


No que deu o projeto de salvação dos povos originários e africanos?


Na obra já citada, "Descolonizando afetos", escreve também Geni Núnez: "Nós, como povos indígenas, nunca tivemos o desejo de 'salvar' os demais povos convencendo-os à força de que seus deuses eram falsos e de que apenas os nossos são verdadeiros".


O diálogo inter-religioso reclama diálogos intra-religiosos. 


Nós, cristãos e cristãs, no cenário de afirmação do pluralismo religioso e da tolerância religiosa, precisamos explicitar: salvar a quem? salvar de que? ? Salvar pra que?


Quais as implicações de falarmos "salvação" para povos, culturas e tradições religiosas que não partem dos pressupostos cristãos  de pecado e salvação?


Não seria a demonização (dos "outros") uma das mais potentes ferramentas cristãs de inferiorização, desqualificação e dominação do diferente?


"Expulsar demônios" não pode ser lido - estrategicamente, como tática para  expulsar o diferente, o não-europeu ou o não-branco? 


Por que os demônios são sempre os outros?


Quem tem autoridade e poder para distinguir o santo e o demoníaco?

 

De onde onde vem essa forma maniqueísta (bem versus mal) de conceber a vida?


É fato que o cristianismo (de ontem e de hoje) sabe bem de que lado quis estrategicamente colocar as religiosidades indígenas e africanas (= os "outros"). 


Sabemos bem também que em nome do "Deus único e verdadeiro" o cristianismo construiu uma história de intolerância, fogueira e sangue ". 


E com o pretexto de "expulsar demônios", narcisicamente, quis expulsar tudo que não refletia a sua própria imagem de mundo ocidental. 


Não faltam demônios pretos quando o  senhor de engenho e o exorcista tem o mesmo CEP. 


Na obra "Profetismo", o teólogo Ronilso Pacheco, autor também de "Teologia Negra", defende,  na contramão da narrativa colonial, a necessidade de se "exorcizar o racismo". 


E diz que "o exorcismo deste demônio, o racismo, exige jejum e oração". 


Por que afirmar Jesus implica expulsar Tranca Rua (Orixás, Caboclos, etc )?


É o cristianismo atestado de óbito da coexistência?


Sobre preconceito e intolerância religiosa em torno da figura de Exu, escrevem os carnavalescos da Escola de Samba Grande Rio, campeã do carnaval 2021: 


"A associação de Exu com as idéias de 'mal', 'atraso', 'perigo' e 'pecado' (...) remonta, no Brasil, aos tempos coloniais e à escravidão negra (...). 


A imposição de um Deus único, na sociedade cristã ocidental, gerou um grande questionamento a ser resolvido em termos práticos: se afinal , só pode haver um Deus, o que fazer com os demais deuses louvados no restante da face da terra?


Escrevem ainda os carnavalescos: " Uma saída 'eficaz'(simplista e perversa) foi a demonização dos outros deuses...". 


Nessa perspectiva, "expulsar demônio" se tornou em  prática legitimadora do pretenso supremacismo cristão; se tornou, no fundo, a afirmação violenta de um exclusivismo religioso. 


É por isso que, com ou sem Ludmila, também sabemos bem o que está por detrás da frase"Só Jesus expulsa o Tranca Rua das pessoas ". 


O "Só Jesus" de Ludmila (e nosso) vai, de forma culposa ou dolosa, na direção de um fé preconceituosa, exclusivista, arrogante e intolerante.

 

Minha pergunta fundamental é: há salvação para o projeto monocultural de salvação universal imposto pelo cristianismo colonial-escravocrata?


O colonizador criou um "jesus" a sua imagem e semelhança!


Se retirarmos esse "Jesus" e os "demônios" igualmente inventados cai por terra o edifício colonial. 


Com os olhos de meus ancestrais vejo as rachaduras... Pois que caia. E que não fique pedra sobre pedra!


O Teólogo e Pastor Batista Ronilso Pacheco adverte: "Nós precisamos crer menos". 


Diz ele, de forma desconcertante: "Devemos recuperar a suspeita, a dúvida que foi calada, a desconfiança que foi entretida, a perspicácia que foi ludibriada". 


As palavras do Pastor e amigo Ronilso lembram as de Guimarães Rosa: "Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa".

 

Agora, por fim,  certamente, se, ao contrário, aparecesse escrito no  show de qualquer cristão ou cristã para o mundo inteiro ler:"Só Tranca Rua expulsa o Jesus das pessoas", aí o mundo ocidental cairia abaixo.


Gritaríamos, como bons cristãos em defesa de nossa fé: com Jesus NÃO!


É verdade; é fato: para o cristianismo colonial de brancura os demônios são sempre os outros... E esses "outros" tem nome, cor e endereço. Solução: pimenta nos olhos deles! 


Marietta está certa sim, "pimenta nos olhos dos outros é refresco"!


Basta de Intolerância Religiosa! 


Que Tranca Rua te perdoe, Ludmila!!!



*Padre Gegê é Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro e Doutor em Ciência da Região pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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